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sábado, 8 de novembro de 2014

Pessoas sem teto, um problema que só cresce nas grandes cidades


Na minha caminhada matinal não chego a alcançar outro bairro, mas vou a uma boa distância. E hoje já atravesso o “território privado” de três casais, felizmente sem filhos, que conseguem um canto para dormir nas calçadas, se abrigam com roupas e cobertas doadas. Um deles tem até um rádio, que o homem põe para tocar bem cedo com as notícias do dia. Há cerca de seis meses, eram apenas dois casais, dois pedaços de calçada ocupados. Na minha tosca pesquisa, vi um aumento de 50% dos sem-teto aqui na vizinhança, portanto.

O Brasil livrou milhões da miséria desde a era Lula, e isso é fato. Mas o Rio de Janeiro, que vai receber as Olimpíadas e onde aconteceu a final da Copa, virou uma cidade vitrine. Muita gente quer vir para cá atrás de sonhos que nem sempre conseguem tornar reais. De verdade mesmo, temos é um baita problema de moradia que compartilhamos com outros grandes centros urbanos globalmente. Metade da população mundial vive em áreas urbanas, sendo que um terço das pessoas está em favelas e assentamentos informais. O número de cidadãos morando em favelas aumentou de 760 milhões, em 2000, para 863 milhões, em 2012. Estimativas apontam que, até o ano 2050, mais de 70% da população mundial estará vivendo em cidades.

Todos esses dados estão no site da ONU (www.onu.org.br), que elegeu a brasileira Raquel Rolnik como sua relatora especial sobre direito à moradia adequada. Foi no blog da urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP que assisti a um documentário sobre uma ocupação urbana chamada Eliana Silva, em Belo Horizonte, que me fez pensar bastante. São quase 300 famílias que estavam vivendo em situação semelhante aos casais que encontro em meu caminho. Decidiram se juntar, fizeram mutirões, receberam ajuda de estudantes de arquitetura, ergueram casas, uma creche para abrigar as crianças e acalmar o pessoal do Conselho Tutelar. E lá estão vivendo, já há cerca de dois anos, com medo, sempre, de serem desocupados pelas autoridades governamentais, claro.
Porque, por mais que possa parecer razoável aos olhos de quem está distante, como eu, que só enxergo o problema e uma possível solução, aquele terreno deve ter “dono”. E aí... Até mesmo a solução alternativa que encontraram, com a ajuda dos estudantes, para tratar o esgoto, usando bananeiras para sugar a água suja, fica sendo apenas uma atitude fora da ordem, da lei.

Temos o “Minha Casa Minha Vida”, programa do governo federal que faz cinco anos e prevê entregar, até o fim de 2014, dois milhões de casas. Mas o Movimento dos Sem-Teto diz que há sete milhões precisando de moradia, portanto essa conta não vai fechar. Em nível mundial não existem dados concretos, segundo afirma Raquel Rolnik no Informe que apresentou à ONU em 2012.

“A insegurança da posse é um fenômeno mundial. No entanto, a avaliação da natureza e a magnitude do problema tropeçam com dificuldades de definição e quantificação, e não se dispõe de dados exatos. Isso acontece devido ao fato de que a segurança da posse é, em parte, uma questão de percepção e experiência que depende, em grande medida, do contexto político, econômico e cultural, além de ser uma questão de caráter jurídico”, diz ela no documento.

“O Futuro que queremos” é o nome do texto que os líderes mundiais escreveram em conjunto após a Rio+20, Conferência sobre o Meio Ambiente que reuniu mais de 130 deles aqui no Rio. Lá diz que é urgente livrar a humanidade da pobreza, da fome. Diz ainda que é preciso promover um crescimento econômico sustentável, equitativo. Está implícito o direito à moradia, é claro. Mas, como fica claro também, é grande a distância entre escrever, assinar e tomar iniciativas reais.

Muitos dos que estão nas ruas perderam suas casas em eventos extremos. E há grandes chances, segundo cientistas, de que tais eventos se avolumem se não se tomar, a partir de agora, providências no sentido de baixar as emissões de carbono. Portanto, aqui se juntam as três pontas da cadeia: social, meio ambiente e o econômico, já que para se evitar emissões as empresas precisarão parar de pensar em fazer negócios como sempre fizeram e promover uma mudança real de gestão.

Nesse processo de reflexão busquei em meus arquivos um texto que serve para aferventar as dúvidas e a minha inquietação sobre o nosso sistema econômico. O artigo se chama “Padrão de Vida” e foi escrito por Serge Latouche, filósofo e economista francês, professor na Universidade de Paris e um seguidor da teoria de decrescimento, para o livro “The Development Dictionary” (Zed Books). Latouche traça uma linha histórica sobre o tal padrão. Ele foi definido na Carta dos Estados Unidos em 1945 e reafirmado no discurso do presidente Truman ao Congresso em 1949, quando anunciou a necessidade de ajudarem as pessoas de economias subdesenvolvidas a construírem seu padrão de vida.

Em 1954 as Nações Unidas determinaram, num texto, o que seria viver dignamente. E lá há uma receita com 12 ingredientes, incluindo, sim, a moradia, além de instalações domésticas adequadas.

“Todavia, na prática, tais conceitos tão largos têm sido apenas simbólicos”, escreve Latouche. O impacto do texto, segundo o autor, é questionável. Mesmo nos lugares onde levou a ações concretas no sentido de se garantir necessidades básicas, autossuficiência em produção de alimentos ou tecnologias apropriadas, os resultados são ambíguos.

Para o escritor, alcançar o padrão de vida impresso globalmente pelo Ocidente, sobretudo nos anos pós-guerra, virou uma espécie de obsessão diária, mesmo nos países que viviam uma economia que absolutamente não comportava tal estilo. Para ajudá-los, os ricos se prontificaram a fazer empréstimos. E as dívidas começaram a crescer, o que só fez aumentar a corrida e o fosso entre pobres e ricos.
E assim chegamos aos casais sem-teto da minha vizinhança? Talvez, mais do que tudo, chegamos à possibilidade de questionar, inclusive, a eficiência de textos tão altamente elaborados por representantes de todas as nações, como “O futuro que queremos”, editado depois da Rio+20. Mas, se não for assim, como seria? Hegemonizar as medidas parece ser a única via, mas o alerta feito por Latouche sobre um único padrão de vida perseguido mesmo por quem não tem como alcançá-lo faz sentido para mim.

Um imposto maior para os mais ricos, como quer Thomas Piketty, seria um caminho para se ter uma sociedade mais justa? Um indicador diferente do PIB, como querem os economistas Joseph Stiglitz, Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi, que coubesse nele a qualidade de vida e as diferenças? Um mundo financeiro com menos ganância? A produção industrial menos faminta sobre os recursos naturais?

Tem mais possibilidades. Até mesmo respeitar atitudes como a dos cidadãos que se juntaram para fazer o assentamento em Belo Horizonte, usando recursos próprios, doações, para buscar uma forma de dormir mais dignamente do que na calçada ao relento. Afinal, alguns povos antigos africanos acreditavam que a verdadeira miséria está em ser sozinho.

De ações globais a ações locais, do macro para o micro. Claro, nada é tão simples assim. Mas é bom refletir.

http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/pessoas-sem-teto-um-problema-que-so-cresce-nas-grandes-cidades.html

O caminho do progresso em um mundo de desigualdade social



Quando li, nesta quinta-feira (4), no jornal “Valor Econômico”, a notícia de que a empresa Santo Antônio Energia (SAE) está com a situação financeira bastante desequilibrada, meu pensamento foi, imediatamente, para a senhorinha que entrevistei quando estive em Porto Velho fazendo reportagem sobre pessoas que tiveram que sair de suas casas para dar lugar à Usina Hidrelétrica Santo Antônio – instalada no Rio Madeira, na capital de Rondônia. Era novembro de 2011 e eu estava ali, a convite da própria empresa, para ouvir histórias de vidas. A de Emilia Mendes, na época com 84 anos, foi a que mais me impactou. Dentre os 1.736 moradores ribeirinhos do Madeira que precisaram ceder lugar à Usina, Emilia foi uma das que deu mais trabalho à equipe técnica da SAE: não queria sair de casa de jeito nenhum.

A casa de Emilia não estava no traçado do alagamento que a Usina provocaria, mas em área de risco por causa das obras. Os técnicos da Santo Antônio apresentaram-lhe as opções que estavam sendo oferecidas aos reassentados: receber o pagamento do que valia a casa em dinheiro ou ter um crédito para comprar outra casa ou, ainda, se mudar para uma casa nova construída perto dali. A todas as opções, Emilia respondeu com as mesmas palavras: “Não quero. Daqui só saio morta”.

A solução foi erguer uma casa igual à dela, com o mesmo tipo de madeira (exigência de Emilia), apenas alguns metros acima, para sair do risco.

Outra exigência cumprida foi que não retirassem a árvore que ela, diariamente, ao acordar às 4h da manhã, contemplava enquanto tomava o café que ela mesma fazia. O ritual era seguido desde que Emilia se entendeu por gente. Casou-se, teve filhos, sempre ali, na mesma casa. Não estudou, nunca aprendeu a ler, porque o pai achava que isso não era “coisa para mulher”.

Na minha viagem, encontrei Emilia em sua casa “nova”, pés no chão, lavando louça. Ela não ouvia muito bem, sua fala era prejudicada pela falta de dentes. Assim mesmo, foi com alto e bom som que me disse que não estava satisfeita, ainda, com a solução dada pelos técnicos da empresa. E não conseguia entender por que tiveram que arrumar-lhe outra casa. No final da fala, a expressão que me mostrou que Emilia estava, apenas, conformada com o que aconteceu: “Não gostei, mas fazer o quê?”.

Por telefone, nesta quinta, pedi à assessoria de imprensa da empresa que me desse notícias sobre a senhorinha, mas não obtive resposta. Entendo. Afinal, segundo a reportagem do jornal, a Santo Antônio Energia está passando por tempos turbulentos. O presidente Melo Pinto disse para os repórteres que a empresa está na iminência de entrar em colapso. Já mandou embora 350 pessoas que trabalhavam no local. Na época em que fiz a reportagem, quando as obras estavam pelo meio, havia 18 mil operários e, segundo me informaram, 80% eram da região.

A ameaça, ainda segundo a reportagem, é de que a obra se paralise por falta de dinheiro, já que na segunda-feira (8) o Consórcio terá que pagar R$ 860 milhões à Câmara de Comercialização de Energia Elétrica. Pelo que entendi, o problema é que o prazo não está sendo mantido. Mas os sócios já estão se mobilizando e, muito provavelmente, o fechamento não vai acontecer. Não vão permitir que uma imensidão de impacto causado ao meio ambiente tenha sido à toa. Não vão permitir que quase duas mil pessoas tenham cedido seus territórios à toa. Não vão querer, no fim das contas, ter tanto prejuízo também, é claro.

A essa altura, creio que parar tudo para me dar notícias sobre uma senhorinha reassentada é exigir muito. A economia, os negócios, têm prioridade, não só nesse como em qualquer empreendimento do mundo corporativo. Mas as pessoas é que me afetam. Por isso pensei não só em Emilia Mendes como em todos os outros personagens com os quais conversei naquela viagem. Pessoas que deram seu quinhão de sacrifício para compor o cenário que hoje se apresenta assim: o consumo de energia no Brasil, que é de 517 Terawatt/hora, em 2050 será de 1.624 Terawatt/hora. Ou seja, vai dobrar.

Por coincidência, também nesta quinta, fiz contato com o texto de Erik Assadourian (diretor do Worldwatch Institute que coordenou o último estudo “Estado do Mundo”) sobre “progresso genuíno”. O GPI, índice que mede o tal progresso genuíno e tem sido utilizado por alguns países, acaba sendo semelhante ao já bastante criticado PIB quando afere compras do consumidor, gastos do governo e investimentos de empresas. Mas se difere quando subtrai das atividades econômicas a poluição, custos de acidentes, degradação de recursos, despesas feitas com combate ao crime em regiões inóspitas. E quando acrescenta dados bons, como o valor do dólar estimado de horas de trabalho voluntário.

Contas feitas, enquanto o PIB praticamente dobrou de 1970 para cá, diz Assadourian, o GPI ficou praticamente estagnado, o que nos impõe alguma reflexão sobre o progresso. Mas o próprio autor acrescenta: não será trocando de indicadores que vamos resolver a questão mais séria que nos põe frente a frente com a degradação de vários recursos naturais e com a ameaça do aquecimento da Terra. O mais importante será diminuir a produção e o consumo de energia e de bens materiais.

“A questão é se essa redução vai acontecer de forma proativa ou de forma reativa, através de uma contração econômica provocada pela mudança climática, o colapso dos sistemas oceânicos ou a quebra de algum ecossistema. Incentivar o mundo hoje a se desenvolver dentro dos limites da Terra significa dizer para as pessoas que elas vão ter que viver em casas menores, dividir mais seu espaço com outras pessoas, consumir menos energia elétrica, comer menos carne, viver sem carros, voando menos para os lugares”, diz o artigo.

Mas, pensando bem, para Emília Mendes e muitos daqueles reassentados para a construção da Usina Santo Antônio, este não será um cenário muito diferente de sua rotina diária. Ou seja: as pessoas mais afetadas pelas obras que colaboram para a manutenção do consumismo são também as que nem encostam o dedo em tanto exagero. Por um lado, vão até sentir menos quando chegarem os tempos de escassez.

Assadourian lembra que Cuba, por conta do embargo dos Estados Unidos juntamente com o colapso da União Soviética, deixou de ser o sistema agrícola mais industrializado da América Latina porque não tinha combustíveis fósseis para executá-lo. E hoje é um dos poucos países no mundo que tem um alto índice de desenvolvimento humano e é muito pouco poluente.

“Não foi um caminho fácil, teve que ter racionamento e incentivo para a produção de pequenas hortas em casas. Hoje, o país tem uma pegada ecológica de apenas um quarto dos Estados Unidos, mas indicadores de saúde quase iguais – para alguns até mesmo melhores – com taxas de obesidade de um terço comparado ao nível americano. Lá também morrem menos recém-nascidos, segundo dados do “Estado do Mundo”, diz o autor.

Não há moral da história. Mas, como se vê, há muito conteúdo para reflexão.


*Foto Usina Hidrelétrica Santo Antonio: Ivanete Damasceno/G1
*Foto Emilia Mendes: Amelia Gonzalez/G1

http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/o-caminho-do-progresso-em-um-mundo-de-desigualdade-social.html

A vida dos catadores e a lei dos resíduos que não pegou no país


Nunca pensei que um dia eu iria rever minha antipatia pela obsolescência programada. O motivo que me levou a olhar com outros olhos a prática das empresas de fabricarem produtos com prazo de validade bem menor para estimular o consumo foi o documentário “Efeito Reciclagem”, que assisti nesta terça-feira no festival Green Nation, que está sendo realizado no Rio. O diretor, o canadense Sean Walsh, conseguiu fazer de um tema árido um filme gostoso de assistir, leve e, acreditem, até engraçado em alguns momentos.

O personagem Claudinês Alvarenga, que atravessa as ruas de São Paulo com sua Kombi caindo aos pedaços, abarrotada de lixo reciclável, espalha sua simpatia para além da telona, e a gente sai com vontade de conhecer mais sobre a vida de todos os carroceiros que nos cercam. O trailer do filme pode ser visto aqui.

Para começar, Claudinês tem 60 anos, três mulheres oficiais, duas das quais vivem com ele e alguns dos 28 filhos (até onde consegui contar). Seu método de sedução foi um só: “Soube que você está na pior. Não quer ir lá para casa?”. A primeira foi Maria de Lourdes, que o acompanhou muito tempo em suas viagens para apanhar lixo reciclado e levar para as empresas que o transformam em novos produtos. Moravam na Kombi mesmo, até que Maria de Lourdes ficou grávida. Claudinês alugou um casebre para o casal com a filha, mas Maria de Lourdes não se habituou à vida de dona de casa. Tinha ciúmes, queria seguir com o marido trabalhando nas ruas e o jeito foi se separarem. Depois vieram as outras e, no final, duas moram juntas. Com ciúmes? “Só um pouco”, respondem com meio sorriso.

Tudo isso Claudinês vai contando para a câmera enquanto o espectador segue com ele em sua Kombi, de dia, de noite, de madrugada. O diretor Sean Walsh está na Europa, mas deixou prontas algumas respostas para principais e óbvias perguntas sobre o filme. Uma delas, claro, é saber como o canadense, que mora há mais de dez anos no Brasil, chegou a esse personagem tão raro.
“Antes de iniciarmos as filmagens, entrevistamos vários catadores e famílias mas, pouco antes do início previsto, houve a crise econômica (2008) e tivemos que adiar as filmagens. Depois, em abril de 2009, quando finalmente iniciamos as quatro semanas de captação, muitos dos nossos personagens haviam abandonado a reciclagem e foram trabalhar em outras áreas. Foi então que mudamos a ideia inicial. E resolvemos contar melhor a história do Claudinês. Chegamos a entrevistar novamente outras famílias, mas a história dele era tão simbólica. Ele tinha de ser o protagonista”, escreve Walsh.

O documentário foi pensado para falar sobre a vida desses personagens que dão um fim nobre a objetos que já serviram, e hoje não servem mais. Claudinês roubou a cena com seu estilo de vida tão singular, mas o filme mostra também como ele e seus colegas colaboram para o índice de 27% de resíduos recicláveis que foram recuperados em 2012 no país, sendo mais de 65% em embalagens.*

Desde pequeno Claudinês aprendeu a andar pelas ruas, com o pai, catando objetos e hoje é um empreendedor, trabalha duro e contribui para a economia do país. Ele conta isso enquanto conserta uma televisão que servirá para a família, assim como fez com computadores e outras coisas.

Segundo Claudinês, o tubo das televisões é o maior problema, pois impede que elas sejam consertadas e vendidas. “Tenho mais de 50 tubos jogados ali no meu quintal, não tenho o que fazer com eles, ninguém compra”. Para ele não existe lixo, tudo pode ser reaproveitado. O que mais vende são latinhas, papéis. O plástico é muito leve. O fim do ano é bom de fazer negócio, mas em outubro o movimento é menor.
O documentário vai mostrando outros personagens que exercem a mesma atividade, embora não tão carismáticos. Uma conversa entre Claudinês e um colega carroceiro revela os dados orçamentários e as reivindicações de uma classe que ainda vive no pé da pirâmide. Uma carroceira conta que recebia, por dia (na época em que o filme foi feito), cerca de R$ 45 – dos quais R$ 20 iam para as refeições. Sobravam R$ 25.

“Precisamos criar um sindicato, ser catador é profissão igual a qualquer outra. Quando se tem uma carroça, o trabalho é ainda mais duro porque não se pode andar sozinho, as pessoas reclamam quando se anda devagar porque atrapalha o trânsito”, dizem em conversa.

Com tantos filhos, é claro que Claudinês tem quase um exército para ajudá-lo. Uma das meninas diz que sente orgulho do trabalho porque está ajudando a geração da filha (Claudinei já tem muitos netos!) a não viver num mundo tão cheio de lixo. Outra, que só conheceu o pai na adolescência, diz que depois disso é que passou a dar valor ao lixo que descarta. E Claudinês conta ainda como descobriu que sua atividade também ajuda a não poluir os rios.

“Quantas vezes eu saio de lá da Vila Maria, venho aqui e fisgo pneus que jogaram no Tietê para usar na Kombi ou para vender. Eu fazia isso pelo meu dinheiro, mas há pouco tempo descobri que colaboro também para o mundo ficar mais limpo”, disse ele.

Dados de 2013 mostram que o Brasil produziu, só naquele ano, 193.642 toneladas de lixo por dia. Mais de 24 mil toneladas deixam de ser coletadas e são descartados de forma irregular. O país ainda tem 2.900 lixões e somente 2.202 municípios, de um total de 5.570, cumprem a Lei Nacional de Resíduos Sólidos, assinada em 2010, cujo prazo para que as cidades pudessem se adaptar a ela terminou no dia 2 do mês passado.
A nova lei determina ações como a extinção dos lixões do país, além da implantação da reciclagem, reuso, compostagem, tratamento do lixo e coleta seletiva nos municípios de todos os estados brasileiros. Outra pauta que não se vê nas agendas dos candidatos das próximas eleições.

Se, por um lado, o país perde R$ 8 bilhões/ano por não descartar corretamente seus resíduos (dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea de 2012), ele também conseguiu gerar, no mesmo ano, R$ 10 bilhões com a triagem e o processamento adequados. Claudinês está entre os que conseguem viver dessa atividade, e vai muito bem, obrigado.

Um pouco dessa visão mais humanitária de uma atividade hoje vista como ecologicamente correta é que torna o filme de Sean Walsh diferente. Segundo ele, a intenção foi “revelar o quão importante é este mercado de trabalho tanto social quanto ecológica e economicamente". "Eu queria fazer um filme que falasse do caráter humano deste tema. São pessoas que vivem desta indústria de reciclagem com dignidade”, explicou o diretor do documentário.

Vou pegar carona numa brincadeira sugerida pelo Sebrae nas várias telas de televisão espalhadas pelo Museu da República e deixar aqui minha sugestão “para um mundo mais sustentável”. No caso, vou endereçá-la aos futuros, aos atuais, aos reincidentes governantes. Não custa sonhar: a ideia é fazer uma pesquisa qualitativa para conhecer todas as pessoas que trabalham com produtos recicláveis e não querem se associar a uma cooperativa (têm direito). Forneçam material de trabalho, que seja uma carroça ou um carro não poluente e seguro. E deixem que eles façam o que já fazem. Mas, por favor, nada de cobrar impostos ou taxas, vejam bem que o serviço que prestam já vai colabora muito com as empresas municipais na tarefa de manter a cidade mais limpa e os rios menos poluídos. Só isso já é ganho. 
*Dados do Cempre divulgados aqui.

Foto: cartaz do filme 'Efeito reciclagem' (Divulgação)

http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/vida-dos-catadores-e-lei-dos-residuos-que-nao-pegou-no-pais.html

A esperança de que o mundo aqueça só 2 graus até 2050


O Brasil emitia 2,5 bilhões de toneladas de dióxido de carbono no início dos anos 2000 e esse número caiu à metade, graças ao drástico corte no desmatamento - dados do Imazon dão conta de que houve queda de 75% do desmatamento nesse período. Por conta disso, o país não foi citado por Greg Baker, ministro de clima e energia britânico, na semana passada, quando este fez um apelo aos quatro grandes poluidores – Estados Unidos, Europa, Índia e China – para baixarem suas emissões no sentido de tentar evitar um aumento de temperatura acima dos 2 graus em 2050. Isso deixa o Brasil numa posição bem competitiva.

Quem me deu a notícia foi Emilio Lèbre La Rovere, coordenador executivo do Centro de Estudos Integrados sobre Mudanças Climáticas e Meio Ambiente da Coppe/Ufrj e um dos responsáveis pelo relatório brasileiro que fará parte do estudo organizado pela Rede de Desenvolvimento Sustentável reunindo os 15 países que representam mais de 70% das emissões globais. É uma espécie de conjunto de sugestões antiaquecimento propostas por acadêmicos desses países que será entregue no dia 23 de setembro ao secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, durante a Assembleia Geral. Em julho, quando escrevi a respeitodos relatórios entregues pelos outros países, faltava o estudo do Brasil. Agora não falta mais.

A entrevista com o professor Emilio estava marcada para ontem bem na hora do rush. Optei por ir de ônibus até o Jardim Botânico para evitar o engarrafamento. Mas, não fosse a espera no ponto, eu teria chegado até antes da hora. A rapidez do trajeto foi possível porque algumas ruas da Zona Sul têm agora uma faixa azul onde só os ônibus podem circular. É preciso estender a iniciativa para todas as regiões da cidade porque já deu para perceber que dá certo. Ou seja: soluções há, no setor de transportes, para se emitir menos carbono e, ao mesmo tempo, dar mais qualidade de vida aos moradores. Basta ter vontade política.

Foi justamente esse o ponto principal da nossa conversa. Segundo o professor Emilio, tecnicamente o Brasil tem as soluções, o que falta é a vontade de os políticos se debruçarem sobre o tema e de a população entender que é preciso cobrar. Abaixo, a íntegra da entrevista:

Quais as principais propostas que os acadêmicos sugerem para o Brasil baixar mais suas emissões de carbono?
Emílio La Rovere – O que esse relatório quer mostrar é que, apesar de estarmos atrasados, ainda é possível atender à necessidade de limitar o aumento da temperatura média causada pelo aquecimento global em 2 graus centígrados em relação ao que era antes da Revolução Industrial. Tem que ter voluntarismo político. Nesse sentido, no Brasil, tecnicamente, temos as soluções: energias renováveis, desmatamento controlado, plantação de florestas de crescimento rápido e reflorestamento de espécies nativas. 

O objetivo é transformar essas sugestões do relatório em políticas públicas?
La Rovere - Trata-se de um exercício de pesquisa, puramente acadêmico. Os organizadores da Rede de Desenvolvimento de Soluções Sustentáveis (tradução literal de Sustainable Development Solutions Network, ou SDSN), são Jeffrey Sachs, da Columbia University, em Nova York, e Laurence Tubiana, fundadora do Institute for Sustainable Development and International Relations (IDDRI), em Paris. Eles convidaram grupos de pesquisa dos 15 países mais poluidores a fazerem relatórios que farão parte de um composto a ser apresentado dia 23 para o secretariado geral das Nações Unidas, ou seja, a equipe do Ban Ki-Moon. A ideia é que possa ajudar para que alguns chefes de estado usem como diretriz para os negociadores da Convenção do Clima que vai acontecer ano que vem em Paris, no sentido de negociar metas mais ambiciosas e chegar a um acordo mais substantivo de redução de emissões.

O grande entrave para se conseguir um acordo mundial de baixar emissões de carbono continua sendo os Estados Unidos?
La Rovere – Temos duas vertentes, a técnica e a política. Tecnicamente, os grandes emissores hoje são Estados Unidos, Europa, China e Índia. Na semana passada mesmo foi divulgado um documento em que o ministro de clima e energia britânico faz um apelo a esses quatro grupos. O Brasil ficou de fora graças aos progressos, que até foram citados pelo ministro, no corte drástico do desmatamento de 2004 para cá. Nossas emissões eram da ordem de 2,5 bilhões de toneladas de dióxido de carbono e caíram pela metade, o que põe o país numa situação muito forte internacionalmente. Agora, politicamente, você tem razão. A grande questão é que os Estados Unidos têm esse dispositivo constitucional que não dá autonomia ao executivo. Mas neste segundo mandato o presidente Obama se respaldou numa decisão da Corte, que determinou que indiretamente as mudanças climáticas podem causar danos à saúde dos norte-americanos, e mandou cortar emissões de termelétricas a carvão. Por isso há esperanças de que até o ano que vem ele consiga ratificar um acordo mais ambicioso.

Para baixar emissões é preciso diminuir a produção industrial?
La Rovere – Eu não diria que é preciso produzir menos no conjunto. Mas, certamente, precisamos usar menos automóveis e mais transporte coletivo de massa. Sabemos, é evidente, que não dá para fazer uma linha de Metrô por dia, nós aqui no Rio estamos nessa luta há 40 anos e só conseguimos fazer duas linhas. Agora, o longo prazo começa hoje e aí vem a questão de a opinião pública pressionar o Estado no sentido de fazer escolhas para maior sustentabilidade. Além disso, aqui no Brasil podemos também reflorestar áreas degradadas – há estimativas de que temos hoje de 20 milhões a 60 milhões dessas áreas. Claro que na Mata Atlântica tem que plantar floresta nativa, mas em muitas áreas da Amazônia e do Cerrado podemos plantar eucalipto, pinho, e fazer com eles o combustível da indústria. Nós temos no Brasil os recursos naturais que, com ajuda da sociedade, podem nos colocar em vantagem competitiva porque os outros países não têm esses recursos.

Há estudiosos dando conta de que o setor de serviços vai superar a indústria no futuro. Acha que é por aí o caminho, já que este setor polui menos?
La Rovere – Isso já acontece naturalmente à medida que as economias vão se desenvolvendo. Se, quando todo mundo tem um carro, em vez de ter um segundo carro a pessoa comprar um celular, este tende a ser menos agressivo ao planeta. Mas, de qualquer forma, mesmo para fabricar celulares é preciso aço, algum plástico... Não dá para apontar como solução.

E onde está a solução?
La Rovere – Na forma com que a gente usa e produz energia. Precisamos ter uma civilização que consuma menos energia e carvão, já que o carvão é usado no mundo todo para gerar energia. Precisamos de uma forma limpa para gerar energia, seja solar, eólica (que também tem seus impactos), a própria energia nuclear, se ela conseguir superar seus problemas de custos e resíduos. Quanto aos combustíveis líquidos, teríamos que atacar principalmente o setor de transportes e a indústria.

A indústria é mais difícil, não?
La Rovere – Sim, nossos problemas são as indústrias intensivas em energia, como siderurgia, cimento, papel celulose, química, alumínio, metais não ferrosos. Mas muito pode ser feito nos processos, com equipamentos mais eficientes, reciclagem de alguns bens intensivos em energia. E com uma estrutura econômica que demande menos desses produtos (usando a reciclagem), teremos uma série de ações combinadas. Agora, nos transportes é possível atacar com carros elétricos e biocombustível.

Mas como fica a questão de usar terra que produz alimentos para fazer biocombustível?
La Rovere – No mundo todo isso é uma preocupação, sim. Mas, no Brasil, que é uma terra abençoada, não. Tem que explicar que a plantação de cana está a dois mil quilômetros da Amazônia... Se conseguirmos manter o Zoneamento Agroecológico, nosso relatório mostra que até 2050 podemos chegar a 25% de mistura do biodiesel com o óleo diesel, hoje em 7%, além de aumentar substancialmente o uso de etanol de cana em substituição à gasolina.

Estou entendendo que esse relatório é bastante otimista...
La Rovere – O desafio que nos foi dado foi o seguinte: ainda é possível limitar o aquecimento em 2 graus? Quinze grupos de 15 países fizeram as contas e chegamos num número bem próximo a isso (são 2 graus e alguma coisa, mas é melhor do que 4 graus), só não conseguimos atingir a trajetória.

Como assim?
La Rovere – Não se vai deter o aquecimento global se emitirmos muito daqui a 2050 e cortarmos drasticamente só naquele ano. O aquecimento é proporcional à soma de todas as emissões ao longo de todos esses anos. Nós ainda não conseguimos uma trajetória que declinasse. No caso do Brasil, colocamos as emissões no caso energético ainda crescentes até 2030, e a partir daí começaria a declinar.

E os custos para se chegar a isso?
La Rovere – Essa é a segunda parte de nossos estudos, que vamos fazer no ano que vem. Mas o que já vimos foi que trocar um equipamento que ainda não foi pago por outro mais eficiente é difícil. Mas, se ele pifar e for substituído por outro, aí sim, pode ser um modelo mais econômico. O que é importante é não ter a retirada precoce do estoque do capital.


Li o relatório da Austrália e fiquei impressionada porque o país, que está tomando atitudes contrárias à baixa de emissões, diz lá que vai conseguir fazer o dever de casa direitinho...
La Rovere – Esses relatórios não são previsões, funcionam como um alerta. Não estamos dizendo que tudo o que está escrito vai acontecer. O que dizemos é que, sim, há esperança, ainda dá tempo para se conter o aquecimento a 2 graus, mas que para isso é preciso fazer transformações radicais no nosso modelo. E usar tecnologia.

http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/esperanca-de-que-o-mundo-aqueca-so-2-graus-ate-2050.html

Betinho tinha pressa para acabar com a fome, que hoje ainda afeta 800 milhões

Ninguém há de ter saudades daquele cenário político. Mas o fim da década de 1980, com a democracia recém-instalada no país e a volta de exilados, entre eles Betinho, até então apenas conhecido por ser o “irmão do Henfil”, trouxe uma efervescência aos meios sociais que causa orgulho em muita gente que participou dela. Em 1993, já com um primeiro presidente civil eleito pelo povo devidamente desempossado, e outro no lugar, foi o momento de espanar a poeira da ditadura, criar organizações e protestar por um mundo melhor para todos.

Naquele instante, o foco não poderia ser apenas a pobreza. Era preciso dar nome e endereço às vítimas de um sistema perverso que deixava, na época, 32 milhões de pessoas sem ter o que comer. Foi quando, em 24 de junho de 1993, Betinho, que já se transformara na cara do manifesto contra a fome, convocou os brasileiros a assumirem um papel ativo para mudar o vergonhoso cenário. É uma história bonita, que precisava mesmo ser contada de forma perene, por pessoas que participaram daquele momento e estão por aqui, ainda ativas, entendendo que a memória, nesses casos, deve ser refrescada. É essa a principal função do livro “Ação da Cidadania 20 anos”, lançado nesta quinta-feira (25), escrito por Nadia Rebouças. O patrocínio de poderosas corporações para a edição, muito bem feita, com várias imagens belíssimas da época, revela a certeza atual, no mundo das empresas, da necessidade de cuidar da imagem, esse valor intangível.
Betinho chamava empresários, ricos, remediados e a imprensa para fazerem uma espécie de cruzada para levar alimentos a quem não os tinha. Como repórter do jornal “O Globo”, saí às ruas várias vezes para fazer matérias sobre o tema. Ainda me lembro da primeira que fiz para mostrar que a fome não estava só no Nordeste, nos rincões secos da caatinga, mas também aqui no Sul/Sudeste, bem perto de nós. A poucos quilômetros do centro financeiro do Rio de Janeiro, a Avenida Rio Branco, que jorra capital – especulativo ou não –, encontrei um menino de uns 7 anos tomando conta do irmão recém-nascido num barraco de madeira erguido na então Favela do Chatuba. A mãe estava trabalhando ali bem perto, no lixão de Gramacho.

Não preciso nem puxar muito da memória para lembrar o horror que eu senti quando olhei o fogão do barraco e encontrei duas panelas. Uma, com resto de um arroz cheio de mosca. Outra, com o leite que o menino deveria dar ao irmão: estava azedo. O texto da reportagem correu mundo. Alguém do outro lado do Atlântico escreveu (era década de 90, ainda não tínhamos internet, lembra-se?) e adotou as crianças. Final feliz.
E assim foi acontecendo. Betinho batendo à porta, sendo ouvido. Pessoas do mundo artístico davam sua imagem para a campanha, empresas foram chamadas também para mostrar sua responsabilidade social. O quadro foi se mantendo menos aterrador. Era assistencialismo sim, o próprio livro recém-lançado admite isso. Mas foi preciso fazê-lo, a urgência era grande. "Quem tem fome, tem pressa", dizia Betinho.

A campanha foi ganhando outros contornos, outras premências vieram à tona, outras demandas foram sendo denunciadas. “Fome de emprego também mata!”, dizia Betinho. Até o dia 9 de agosto de 1997, quando a Aids, doença estúpida, matou o sociólogo.

“Agora é com vocês!” Esta espécie de última mensagem passou a circular entre aqueles que queriam viver num país menos desigual. Entre eles estava o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que desde o início colaborou com a campanha elaborando um documento de 20 páginas no qual propunha a criação de uma Política Nacional de Segurança Alimentar, prevendo o nascimento do atual Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), que pôs em execução tão logo assumiu seu primeiro mandato, em 2002.
De lá para cá, sim, os miseráveis e famintos foram tendo oportunidades de sair dessa classe, da ralé, e assumir outro status. Oficialmente são a “nova classe média”. Mas para alguns estudiosos, como o sociólogo Jessé Souza, são os batalhadores brasileiros, pessoas que dão duro, de sol a sol, para não caírem de novo na condição em que estavam. Por outro lado, passam a ser vistos pelo mercado como consumidores. É bom, sim, mas se não tiverem cabeça, acabam acumulando um monte de dívidas. Bem, mas isso é outra história.

Coincidentemente, na terça-feira (23), portanto dois dias antes do lançamento do livro que conta a história de Betinho e seu sucessor Maurício Andrade – outro personagem importante nessa trajetória de luta contra a fome e a miséria no Brasil – a Food and Agriculture Organization (FAO), agência da ONU que estuda e pesquisa sobre agricultura e alimentos no mundo, lançou um novo relatório (veja aqui o resumo, em inglês). A boa notícia é que sim, a desnutrição caiu de 18,7% para 11,3% globalmente, e de 23,4% para 13,5% nos países em desenvolvimento no período de 2012 a 2014.

Outra boa notícia é que a América Latina e Caribe fizeram o maior progresso entre as demais regiões. O Brasil está entre os 25 países que não só atingiram a meta proposta pela ONU em 2000, com os Objetivos do Milênio (ODM), a de reduzir à metade a proporção de pessoas com fome, como também reduziu o número absoluto da população nessas condições. Doze países tinham um nível de desnutrição abaixo de 5% entre 1990 e 1992 (entre eles, nossa vizinha Argentina) e foram capazes de mantê-lo assim. E 38 cumpriram a meta dos ODM, de reduzir a proporção de pessoas com fome, sem reduzir o número absoluto.

A má notícia é que ainda existem 805 milhões de pessoas cronicamente desnutridas no mundo. É um número que insiste, abusa da nossa capacidade de entendimento. Há um ano fiz uma entrevista com a presidente do Consea, Maria Emilia Pacheco (veja aqui) e ela já me dizia isso. Afinal, o que acontece?

Com este enorme ponto de interrogação na cabeça, me deparei, lá mesmo na livraria onde houve o lançamento do livro sobre Betinho, com outra recente publicação, do "Le Monde Diplomatique Brasil" e editado pela Editora Veneta, chamado “Thomas Piketty e o segredo dos ricos”. Se não responde totalmente à pergunta, já que tem outro objetivo, ajuda a clarear bastante.

O livro é pequeno, de 144 páginas, com vários artigos de pessoas que já leram “O Capital do Século XXI” – escrito pelo economista francês Thomas Piketty, que pôs o tema da desigualdade social na ordem do dia – e decidiram passar adiante uma espécie de “tira-gosto para a leitura do principal”, como escreve Ladislau Dowbor, um dos articulistas. Ainda não consegui ler todos os textos da publicação, mas já no de Dowbor consigo um vento fresco sobre a questão, longe da polarização excessiva que sempre nos põe antolhos. Para Dowbor, a desigualdade persevera e assim seguirá enquanto o sistema econômico/financeiro permitir que os ricos detenham, em paraísos fiscais, entre US$ 21 trilhões e US$ 32 trilhões, segundo o Tax Justice Network, uma rede apartidária que se propõe a estudar e analisar o mundo dos paraísos fiscais para criar compreensão e debate sobre o tema. O britânico “The Economist” arredonda esses dados para US$ 20 trilhões, escreve o articulista.

“Os ricos pagarem impostos não é utópico, é necessário. Na proposta de Piketty para a Europa, seriam 0% para patrimônios inferiores a 1 milhão de euros, 1% para os que se situam entre 1 e 5 milhões e 2% para os acima de 5 milhões. Não é trágico, não deve levar os muito ricos ao desespero”, diz o economista e consultor de várias agências da ONU.

Com esse dinheiro, alguns países membros poderiam sair das mãos dos intermediários financeiros, avalia Piketty, o que seria um bom primeiro passo.

O economista francês não foca a fome, a miséria, mas a desigualdade. No tempo de Betinho, alcançar estudos para acabar com a desigualdade ainda era um plano que podia esperar. Antes, era preciso pôr comida no prato dos pobres. A este chamado, todos atenderam. Ao chamado de Piketty, que mexe verdadeiramente no bolso de quem tem capital em abundância, é mais difícil atender. Vai levar um pouco mais de tempo, presume-se.

Enquanto isso, aqui no Brasil ainda há, segundo a FAO, 3,4 milhões de pessoas que passam por insegurança alimentar, o que representa 1,7% da população brasileira. Para alcançar a meta “zero”, a sociedade civil agora propõe medidas mais sistêmicas. Na carta aberta aos brasileiros e aos candidatos lançada nesta semana pelo Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar Nutricional (veja aqui) há nove itens. Entre eles, a necessidade de um debate que inclua o acesso aos alimentos e padrões de consumo e uma estratégia de prevenção da obesidade, outro mal tão imperativo quanto a desnutrição.
Novos tempos de uma sociedade rica, diversa, que vem aprendendo a assumir e lidar com as privações.

*Imagens: 
Marcia Kranz/CPDoc JB/Divulgação
ONG Nação para Cristo/ Divulgação

http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/betinho-tinha-pressa-para-acabar-com-fome-que-hoje-ainda-afeta-800-milhoes.html

Pesquisa diz que só 36% das empresas têm ações sustentáveis concretas


Uma pesquisa feita pela Fundação Dom Cabral com mais de 400 empresas mostra que 78% delas afirmaram que a preocupação com o tema sustentabilidade está na estratégia de negócios, mas apenas 36% têm ações concretas nesta área. Essas mesmas companhias que formam os 78% ainda percebem ações voltadas para a sustentabilidade somente como uma valorização de sua marca e imagem. O resultado do estudo será mostrado nesta terça-feira (30) em evento organizado pelo Centro Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (Cebds) na sede da Bovespa, em São Paulo.

Como uma espécie de “segundo resultado positivo”, ou seja, além do impacto na imagem, os executivos enxergam a melhoria de seu relacionamento com o público de interesse de suas empresas. Sessenta e oito por cento responderam que sim, uma gestão voltada para os cuidados com meio ambiente, com o social, focada numa proposta diferente de desenvolvimento econômico, além de valorizar a marca e a imagem, cria mídia positiva, motiva seus funcionários e melhora seus processos. Mas só 42% apostam nisso como uma forma de aumentar a margem de lucro da empresa.

No post anterior, eu mencionei rapidamente que o sociólogo Betinho, quando lançou sua cruzada contra a fome nos anos 90, chamou as empresas públicas para colaborarem. Muitas aceitaram. Depois foi a vez de as corporações privadas serem lembradas por ele de que não conseguiriam fazer seu negócio avançar de forma saudável numa sociedade miserável. Simples assim.

Antes mesmo da iniciativa de Betinho, porém, a Rio-92, conferência mundial sobre meio ambiente organizada pela ONU, já tinha conseguido produzir no setor empresarial uma espécie de tomada de consciência. O livro “Mudando o rumo – Uma perspectiva empresarial global sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente”, escrito pelo suíço Stephan Schmidheiny, é um documento assinado por 48 empresários que assumem sua preocupação com o futuro dos negócios num planeta que, já naquela época, mandava nítidos sinais de que seus recursos, uma hora, vão acabar.

No livro há trechos como este: “As florestas proporcionam muitos benefícios, mas, ao explorá-las, tanto os governos como as empresas privadas tendem a se concentrar nos valores materiais mais óbvios dos produtos florestais – geralmente a madeira – excluindo o ecossistema e os serviços sociais – porque os serviços sociais proporcionados por elas raramente tinham um valor de mercado. Consequentemente, as florestas dos países em desenvolvimento declinaram em quase a metade neste século”. É ou não é uma tomada de consciência?

Pois então. Os empresários que assinaram esse documento faziam parte do Business Council for Sustainable Development, que aqui no Brasil é, justamente, o Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável (Cebds), associação civil fundada em 1997 e que vai sediar o encontro desta terça, quando lançará dois guias de sustentabilidade que preparou com o objetivo de ajudar empresas a “tornar a gestão sustentável transversal a todos os departamentos de uma companhia”. É mais uma tentativa de incentivar as corporações a entenderem a mensagem que vem sendo transmitida há mais de duas décadas. Juntar-se-á ao chamado de Betinho, aos indicadores do Instituto Ethos (criado em 1998) e, é claro, nunca será demais. 
A torcida é para que as empresas percebam que não dá para fazer mais “business as usual” sem pagar um preço alto por isso.

O Cebds fez uma espécie de diagnóstico, priorizou dez áreas sensíveis ao tema nas empresas e confeccionou os guias. Nesta terça serão lançados um para a área de finanças e outro para a área de gestão de pessoas. Nesse último, por exemplo, a dica do Conselho para as empresas é que elas reflitam sobre a importância de perceber que “cada empregado é um multiplicador da companhia e, com ele, é possível extrapolar as paredes da empresa, sensibilizando stakeholders e fortalecendo o tecido social onde a organização atua”.

Há um trecho da pesquisa da Fundação Dom Cabral, que será lançada junto com os guias, que mostra que a área de sustentabilidade das empresas geralmente fica desconectada com o resto da companhia. É como se ali fosse uma “ilha” de pessoas “do bem, que abraçam árvores”. Quase duendes, com quem é bom ter contato, mas que não se pode levar muito a sério. Como se vê isso por aí...

Essa desconexão pode atrapalhar a visão sistêmica que se quer das empresas, para que elas projetem um desenvolvimento econômico com a possibilidade de diminuir a desigualdade e impactar menos o meio ambiente. Quando peguei o livro de Schmidheiny, uma edição de 1992 da Fundação Getulio Vargas, percebi que eu havia marcado um case especial, dos muitos citados pelo autor, que para mim é emblemático e expõe a incoerência já detectada por muitos estudiosos que se debruçam a analisar os esforços legítimos que as corporações fazem no sentido de obter uma gestão sustentável.

Vejam só: a Shell conta no livro que, em 1953, se instalou na Nigéria, no delta do Rio Niger, onde descobrira petróleo. Em 1958 produzia 6 mil barris/dia e esta quantidade aumentou para 1 milhão de barris/dia em 1973. Durante quase 20 anos de exploração, diz o texto, a empresa trabalhou com operários que chamava de “expatriados”. Até perceber que era melhor ensinar os nigerianos a fazerem o trabalho e assim aumentar o emprego e renda local.

No “caso de sucesso”, a empresa é aplaudida pela iniciativa de ter aumentado de 379 para 1.530 nigerianos como funcionários desde que se deu conta disso – de 1970 a 1990. Isso é bom mesmo. Mas não há no texto sobre essa “tomada de consciência social” demonstrada pela empresa nenhuma menção ao tremendo passivo de poluição que a empresa provocou no Rio Niger, hoje internacionalmente conhecida. E, sim, naquela época, quando relatou sua boa iniciativa de contratar empregados locais, ela já estava sendo alvo de denúncias e de manifestações por causa do desastre ecológico que suas atividades provocaram no rio. Note-se que o problema causa danos não só ao meio ambiente, mas à população, que sofre inclusive com poluição da água potável.

É essa complexidade de pré-ocupações que as empresas precisam dar conta para mudar, dramaticamente, o jeito de fazer negócio. Acabo de receber um livro que havia encomendado, “Creating a Sustainable and Desirable Future” (Ed. World Scientific), com vários artigos de professores, executivos, físicos, CEOs, chamados para pensar sobre como seria esse mundo – sustentável e desejável – em 2050. É uma espécie de futurologia, mas impressiona porque, de fato, os textos tendem a ser bem lógicos. Sobre a indústria, por exemplo, o artigo diz que a mudança será dramática. “A indústria será baseada em circuitos curtos, fechados”, o que levará a medidas bem diferentes daquelas com as quais estamos acostumados. Vejam um trecho:

“O livre fluxo de informações causará impressionantes inovações, muitas vezes tornando patentes obsoletas. Algumas indústrias manterão substanciais economias de escala, utilizando menos recursos por unidade na produção em grandes fábricas. Ainda existirão grandes corporações, mas muitas estarão estruturadas de forma a ampliarem a representação em conselhos regionais e, em certos casos, provocar o poder público, o trabalhador comum. As empresas vão reconhecer sua responsabilidade para produzir um benefício social e não meramente um lucro privado.”

O bom negócio é ser pequeno, já ensinava o economista alemão Ernst Schumacher, morto em 1977, que dizia que um sistema que se baseasse apenas na busca da riqueza é insustentável. E vamos nos dando conta de que sua teoria pode estar cada vez mais próxima daquilo que se imagina como o futuro desejável.

*Foto: vazamento de petróleo no Rio Niger, na Nigéria. (Foto: Sunday Alamba/AP)

http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/pesquisa-mostra-que-so-36-das-empresas-tem-acoes-sustentaveis-concretas.html